Usuários do metrô embarcam e desembarcam das portas dos vagões na estacão da Sé, no centro de São Paulo - Foto Julio Bittencourt/Folhapress

E agora, Brasil? - Transporte urbano

Um diagnóstico do transporte urbano, os problemas e as propostas vindas de pesquisas, dados nacionais e internacionais e análises

Capítulo 8
Análise

Diante da (i)mobilidade, pergunte 'por que o óbvio não acontece?'

São tão conhecidas as necessidades da mobilidade brasileira que, para muitos estudiosos, chega a ser extenuante discutir as propostas

Usuários passam por catracas que separam as linhas de metrô e de trem na estacão da Luz, no centro de São Paulo - Julio Bittencourt/Folhapress

Usuários passam por catracas que separam as linhas de metrô e de trem na estacão da Luz, no centro de São Paulo - Julio Bittencourt/Folhapress

Leão Serva
São Paulo

Mais do que detectar as melhores soluções de transportes públicos para nossas metrópoles, o principal desafio brasileiro talvez seja entender "por que o óbvio não acontece".

Esse é o caso dos sistemas de alta capacidade sobre trilhos, por exemplo, como metrô ou mesmo os "veículos leves sobre trilhos" (VLT), novo nome dos antigos "bondes" das grandes cidades brasileiras até os anos 1960.

É também o caso da necessidade de reduzir nossa dependência da matriz rodoviária no transporte ou limitar o espaço dos carros nas cidades. Ou ainda o mais ululante: por que não conseguimos cuidar bem dos pedestres?

São tantas as coisas necessárias que não ocorrem no Brasil, mesmo quando há aparentes consensos, que para muitos estudiosos de mobilidade chega a ser extenuante discutir as propostas necessárias.

"Já não discuto mais o que é necessário. Todo mundo já sabe. Eu acho que devemos perguntar: 'Por que o óbvio não acontece'", afirma o consultor Frederico Bussinger, 68, ex-secretário municipal de Transportes.

Ao final dos anos 1960, no auge do processo de migração do campo para a cidade, quando as populações das capitais cresciam de forma galopante, várias das mais populosas cidades brasileiras desmontaram suas redes de VLT.

Em seu lugar, foram abertos espaços para os carros. Não foram criados nem mesmo corredores de ônibus, que só surgiriam em Curitiba (PR) em meados da década seguinte (e permaneceriam únicos por várias décadas).

Sem uma alternativa de transporte público de grande capacidade, os seus usuários migraram para o automóvel, quando puderam, ou foram condenados a ônibus que disputavam espaço com os carros no congestionamento. Foi uma espécie de mergulho coletivo no caos, pelo qual pagamos caro até hoje.

A lado cômico da história aconteceu em São Paulo e no Rio nas vésperas da Copa do Mundo. As construtoras incumbidas de implantar novos sistemas sobre trilhos (metrô em SP e VLT no Rio), durante as obras, encontraram os antigos caminhos que asfaltamos meio século antes.

São Paulo chegou a ter cerca de 500 quilômetros de trilhos de bonde espalhados pela cidade, que tinha 4 milhões de habitantes. Como dizem os especialistas ouvidos pela Folha , os veículos sobre trilho têm o condão de reurbanizar regiões, de organizar seu desenvolvimento, de melhorar o ambiente que atravessam.

Diversos bairros da cidade se desenvolveram em torno de paradas de bonde, como é o caso de Moema, uma estação da linha que ligava o centro a Santo Amaro. Outros nasceram com o bonde: o loteamento chamado City Lapa só foi iniciado quando a empresa de bondes garantiu a construção da linha que passava por onde hoje é a avenida Cerro Corá.

Nos anos 1960, a necessidade de metrô já era óbvia. O prefeito Faria Lima anunciou a substituição do bonde pelos trens subterrâneos como uma mudança de patamar de qualidade, um upgrade, como se diz atualmente.

A opinião pública comemorou a troca por algo melhor. Então subitamente o bonde sumiu e, até hoje, em 50 anos, a cidade construiu menos de cem quilômetros de metrô.

Mesmo somando todos os corredores de ônibus, linhas de trens metropolitanas requalificadas e o metrô, a cidade não tem os 500 quilômetros de transporte de média ou alta capacidade que tinha nos anos 1960.

Desde então, a população triplicou e se espalhou por áreas que não faziam parte da mancha urbana. Hoje seriam necessários mais de mil quilômetros de linhas para equiparar àquela infraestrutura.

"Por que o óbvio não acontece?", pergunta Bussinger. Pior, quando acontece pode rapidamente ser desfeito, como aconteceu com Faria Lima e o bonde.

O sucessor de Faria Lima, Paulo Maluf, gastou o orçamento necessário para obras da Linha 3-Vermelha do metrô para construir o Minhocão, uma obra viária exclusiva para carros, ineficiente como solução de trânsito e isenta de qualquer gosto estético.

Era o tempo da ditadura, um prefeito autocrático jogou uma espécie de bomba de nêutrons sobre a área central da cidade. Inaugurado em 1971, desde então a cidade discute o óbvio: como desfazê-lo. Já são 47 anos e ele segue intacto como um monumento à pior engenharia nacional. Só mudou de nome.

O efeito das duas administrações foi uma inversão absoluta: em poucos anos, o número de viagens de carro superou as feitas em coletivos, algo dificílimo de administrar do ponto de vista da gestão pública, do trânsito, da saúde. Esse é o pai de todos os congestionamentos.

Hoje ainda discutimos soluções de trânsito e transportes. Mas a história parece ensinar que a mobilidade é uma metáfora da alma brasileira, como o enigma da esfinge: decifra-me ou te paraliso.